Não cantarei amores que não tenho,
e, quando tive, nunca celebrei.
Não cantarei o riso que não rira
e que, se risse, ofertaria a pobres.
Minha matéria é o nada.
Jamais ousei cantar algo de vida:
Se o canto sai da boca ensimesmada,
é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,
nem sabe a planta o vento que a visita.
Ou sabes?Algo de nós acaso se transmite,
mas tão disperso, e vago, tão estranho,
que, se regressa a mim que o apascentava,
o ouro suposto é nele cobre e estanho, estanho e cobre,
e o que não é maleável deixa de ser nobre,
nem era amor aquilo que se amava.
Nem era dor aquilo que doía;
ou dói, agora, quando já se foi?
Que dor se sabe dor, e não se extingue?
( Não cantarei o mar: que ele se vingue
de meu silêncio, nesta concha. )
Que sentimento vive, e já prospera
cavando em nós a terra necessária
para se sepultar à moda austera
de quem vive sua morte?
Não cantarei o morto: é o próprio canto.
E já não sei do espanto,
da úmida assombração que vem do norte
e vai do sul, e, quatro, aos quatros ventos,
ajusta em mim seu terno de lamentos.
Não canto, pois não sei, e toda sílaba acaso resumida
a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.
Amador de serpentes, minha vida
passarei sobre a relva debruçado,
a ver a linha curva que se estende,
ou se cantrai e atrai, além da pobre
área de luz de nossa geometria.
Estanho, estanho e cobre,
tais meus pecados, quando mais visando
aos alvos imortais.
Ó descobrimento retrato
pela força de ver.
Ó encontro de mim, no meu silêncio,
configurado, repleto, numa casta
expressão de temor que se despede.
O golfo mais dourado me circunda
com apenas cerrar-se uma janela.
E já brinco a luz. E dou notícia
estrita do que dorme,
sob placa de estanho, sonho informe,
um lembrar de raízes, ainda menos
um calar de serenos
desidratados, sublimes ossuários sem ossos;
a morte sem os mortos; a perfeita
anulação do tempo em tempos vários,
essa nudez, enfim, além dos corpos,
a modelar campinas no vazio
da alma, que é apenas alma, e se dissolve.
Carlos Drummond de Andrade. Nudez
Carlos Drummond de Andrade. Literatura Comentada. Textos publicados sob licença de Pedro Augusto Graña Drummond. Editora: Nova Cultural. São Paulo, 1990
Marii Freire Pereira
https://Pensamentos.me/VEM comigo!
Imagem ( arquivo pessoal)
Santarém, Pá 2 de março de 2022

Magnífico 💙
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Belíssimo!👏👏👏
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Realmente, amiga 💖
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Republicou isso em Ned Hamson's Second Line View of the News.
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Lindo! ❤
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