O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formaturas, promoção, glória, doce morte com
[ sinfonia é coral,
Que o tempo ficará repleto é não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.
O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
Um corpo e sua memória,
Um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus…
Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver sempre é esgotar a barra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a
[ morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de corpo na mão
esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant é da poesia,
Todos eles…e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renovava-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub- reptícia.
Carlos Drummond de Andrade. Passagem do ano. A Rosa Do povo. Círculo do Livro. São Paulo, 1945
Marii Freire Pereira
https://Pensamentos.me/VEM comigo!
Imagem: Marii Freire Pereira/Tapajós!
Santarém, Pá 25 de maio de 2022

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